domingo, 20 de outubro de 2024

A POETA



aquela que não cabe em si e procura
incessantemente a última gota:
transborda em palavras

aquela que traduz o que vê
em cachoeira de rimas

aquela que transforma o que vive
em profusão de metáforas

explode o que sente em borbulhas
sinestésicas

derrama o que deseja
em correnteza de assonâncias

aquela que se liquefaz em poética
intensa

mergulha em sentidos
desconhecidos

vem à tona em descobertas
ritmadas

aquela que não se aprisiona
em sílabas métricas

mas as entorna
em construir margens
do seu gotejar
semântico

KLARA RAKAL
20/10/2024

DIA DA POETA

domingo, 6 de outubro de 2024

Teu olho tem um brilho

Teu olho tem um brilho

De sol refletido

— São olhos de mil sóis!

E os meus olhos sós

Procuram os teus

Que, no entanto,

Só me dão adeus...

 

Poema do livro

Rastro de Salamandra, VillarLuna, 2017.

Escrito na minha mocidade


ANTES QUE EU ME ESQUEÇA...

Muitos anos se passaram, mas aquela cena exata, enquadrada pelo meu sentimento, nunca esqueci. O moço estava de pé, todo vestido de branco (era graduando de odontologia), e estávamos rompendo o namoro. 

No meu peito, um aperto, pois eu era muito apaixonada por ele... havia uma tristeza no ar, de ambas as partes. Naquele dia, não houve discussão. Só um sentimento de... nem sei dizer. Vida em suspenso, indefinição... solidão.

Eu estava sentada no degrauzinho do portão de casa, na rua Haia, então tinha um ângulo de visão peculiar. Quando, de repente, um raio de sol, desses fugidio, alcançou bem os seus olhos castanhos, fazendo-os quase ficar cor de mel... havia, sim, doçura naquele olhar, mas também uma frieza, difícil explicar, só a poesia talvez consiga se aproximar do que vi e senti naquele momento.

Entrei e, em vez de chorar, escrevi... sim, chorei depois. Mas registrei em palavras o que daquele dia mais ficou tatuado na minha memória.

Depois reatamos, casamos, tivemos filhos e... muita coisa aconteceu nas nossas vidas, boas e más. Nos divorciamos, a vida deu tantas voltas, mas nós não nos reencontramos mais. Nem amizade ficou, só mágoas... 

Chorei muitas vezes mais, tantas, que desconfio quase secaram minhas lágrimas. Hoje, é muito difícil eu chorar.

*A foto traz um olho feminino, mas não importa: foi a imagem mais aproximada que encontrei daquele olho "de mil sóis"...


domingo, 28 de julho de 2024

ESCREVER É COMO SALTAR DA ALTA CACHOEIRA

CACHOEIRA ALTA - Cachoeiro de Itapemirim - ES

Primeiro, há que se ter coragem, chegar até a borda. 
Depois, imaginar tudo o que vai acontecer quando você se jogar. 
O instante de um segundo entre a decisão e a propulsão. 
Em seguida, o mergulho. 
A imersão do corpo, o choque com a temperatura das águas. 
O deslocamento para o fundo, a profusão das bolhas quando não mais se consegue prender a respiração. 
Por último, o prêmio de vir à tona e finalmente encher de novo os pulmões! 

 A cachoeira é aquilo que o desperta para escrever e você nem sabe direito o que é. 

Galgar as suas pedras até a borda é o tema enfim se definindo, é o assunto sobre o qual você vai redigir. 

Pôr-se de pé na beira dessa queda d'água é o vacilante momento antes de começar a registrar suas ideias: a primeira tecla pressionada, a primeira marca da tinta da esferográfica no papel é o impulso do lançamento. 

A partir daqui não há volta: a expressão do pensamento flui. 

Se o salto é elegante, estudado e tem perfeição de movimentos ou se é intuído conforme o susto e sua coreografia não foi ensaiada, isso define o estilo do texto. 

 E durante o mergulho ocorre a escrita. Você se mistura com as águas incessantes e por mais que tudo dure um instante apenas, parece eterno! Você se sente completamente envolvido e seus ouvidos se fecham para o mundo lá fora... captam-se as batidas do coração de modo louco e tudo se resume nas palavras que dele vão brotando. 

 Finalmente o texto está terminado e você pode respirar, aliviado? O processo pode ter sido dolorido, assustador... ou prazeroso. Nunca sabemos. 

 Às vezes, a margem está longe. É necessária a revisão, a releitura ou a reflexão sobre o texto findo. Algumas braçadas podem ter de serem dadas para o regresso seguro à terra- rotina. Outras vezes, é só sair delicadamente do lago que se formara com as fluidas palavras, pois a margem-satisfação está logo ali, pronta para o acolhimento. 

 Arranca-se a folha do caderno, retira-se o papel da Remington, imprime-se a página: fôlego renovado para os próximos mergulhos na arte de escrever.

KLARA RAKAL
Texto escrito especialmente para compor o posfácio do livro Cartas de amor que nunca escrevi, de Aloísio Villar

25 de julho - DIA DO ESCRITOR.

sábado, 6 de abril de 2024

O quanto não basta

No fim do dia é que percebo o quanto não me bastei.

 Preciso de um outro amanhã...
 
     ... que baste para eu me encontrar
 
     ... que baste para eu digerir a crueldade do mundo
 
     ... que baste para entender que a finitude é uma benção
 
     ... que baste para eu ser corajosa o bastante          para perceber
         que cada instante deveria ser o suficiente         para bastar
 
(e assim o amanhã não precisaria mais chegar).


KLARA RAKAL

segunda-feira, 18 de março de 2024

Mulher, negra, favelada


Mulher, negra, favelada.
Auxiliar de serviços gerais.

Mulher, negra, favelada.
Claudia Silva Ferreira, 38 anos.

Mulher, negra, favelada.
Baleada no morro do Congonha.

Mulher, negra, favelada.
Estava viva quando foi "socorrida" por PMs.

Mulher, negra, favelada.
Arrastada por uma viatura policial por 300 metros na Intendente Magalhães, Rio de Janeiro em março de 2014.

Mulher, negra, favelada.
— Era traficante — justificaram.

Mulher, negra, favelada.
Deixou 4 filhos e 4 sobrinhos que criava.

Policiais ainda não foram julgados,
continuaram na ativa
e um deles já foi promovido.

O tenente hoje é ca-pi-tão

(do mato).

KLARA RAKAL
30.01.2020



Claudia foi morta em 2014, informa o poema. Quando o escrevi, 6 anos após, minha alma ainda estava repleta pelo horror daquele acontecido. Desde aquela época, as personagens dos poucos contos que escrevi chamaram-se e os vindouros irão se chamar Claudia. Uma forma de não esquecê-la jamais, nem a brutalidade que sofreu e o sequestro de sua vida. Isso vai mudar o mundo? Não, não. Eu sei que não. Mas... Tantas Claudias de lá pra cá... E desde antes até ali... Fico indignada, preciso extrapolar os muros da minha sanidade.

Hoje, dez anos após a morte de Cláudia, os PMs foram absolvidos.
E o capitão do mato agora é superintendente.

(Março é um mês marcado por muitas lutas...)






quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

PALAVRAS AO TEMPO











Numa manhã fresca

de um dia qualquer

escreva com pó de giz

palavras ao tempo


Num campo aberto

— caderno natural —

salpicada de sol

intermitente

flutua a pauta

impermanente


Escrever é preciso

o tema não é preciso


Ouça as lições da manhã

perene professora

a música do nascer do dia

nos ouvidos permanecerá


Passarinhos alinhavam

a inspiração final

a tinta fluida do despertar

desamarra os pensamentos

voam


Escrever é preciso...


KLARA RAKAL

poema escrito em 21.01.2024

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

QUANTO VALE?



Quanto vale a vida, 

quanto vale?


Se a lama cobre

se a vila some

se o vale acaba?


Quanto vale a vida, 

quanto vale?


Se a vala abre

se nada sobra

se tudo cala?









Se a Vale mata,

quanto leva?


Não importa

o que se revele,


em quem resvala?


Quanto vale a vida, 

quanto vale?


Se a vela apaga, 

não importa o quanto vele,

o destino sela.


A alma, a morte leva,

mas não a lava.


KLARA RAKAL



HOJE, 25 DE JANEIRO DE 2024, COMPLETAM EXATOS 5 ANOS DA TRAGÉDIA EM BRUMADINHO, MG.

ROMPIMENTO DA BARRAGEM DO FEIJÃO, COM APROXIMADAMENTE 300 MORTES E FORTE IMPACTO AMBIENTAL. 

NÃO PODEMOS ESQUECER!


Poema publicado no livro SEMÁFORO ESCANGALHADO NO AMARELO — em estado constante de alerta poético, 2023, edição da autora, disponível para venda (para adquirir, envie mensagem para o  e-mail klara.rakal2011@gmail.com)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

POEMA DO FEIJÃO


Ela estava catando feijão
e tirava as pedrinhas,
mas percebeu que também excluía
todos os feijões diferentes:

as descascados,
os separados em metades,
os enrugados,
os descorados,
os cortados,
os deformados,
os de cor diferente.

Foi separando e se angustiando.

Fez mentalmente uma comparação com a sociedade atual:

— não é isso que todos os dias se faz?

Ela juntou tudo de novo no alguidar
e cozinhou o feijão
mais justo de todos os tempos.


Poema publicado no livro SEMÁFORO ESCANGALHADO NO AMARELO — em estado constante de alerta poético, 2023, edição da autora, disponível para venda (para adquirir, envie mensagem para o  e-mail klara.rakal2011@gmail.com)